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O que não me mata me fortalece, assim falou Nietzsche


Adriano Ravaioli

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"______________________________________________

27/12/2020 • 07h00

Logo no início da minha primeira análise, aos 21 anos, a psicóloga me aconselhou: "Mirian, para de escrever e vai viver a sua vida".


Achei o conselho um absurdo. Nunca parei de escrever porque acreditava que a escrita salvou a minha vida; que era a única saída para me proteger dos traumas de infância e da violência familiar.


Na semana passada, contei para uma psicóloga, de 79 anos, que estava muito deprimida com o trauma de (quase) ter morrido intoxicada em um incêndio.


"Mirian, se você estivesse deprimida estaria na cama, não teria força e energia para fazer tudo o que está fazendo: resolvendo todos os problemas práticos, limpando e organizando a casa, escrevendo e trabalhando tanto. Você está triste e assustada porque experimentou coisas realmente assustadoras, mas você não morreu, foi quase. E tenho certeza de que você ficou ainda mais forte e corajosa com essa tragédia".


Amei quando ela disse que estou "chorando lágrimas choráveis".


"Você não é mais a menininha apavorada de quatro anos que não tinha ferramentas para se defender da violência familiar. Não é mais a jovem de 16 anos que precisava escrever para se proteger das agressões externas. A vida inteira você usou a escrita como um meio de superar o medo e o sofrimento extremo. A escrita foi uma espécie de refúgio, de esconderijo, para não ser tão machucada. Mas hoje você é uma mulher madura, tem muito mais recursos para se proteger. Pode sair da concha, do isolamento, está na hora de você usufruir o que conquistou nesses anos todos".


O verbo "usufruir", desde a conversa com a minha amiga querida, passou a ser a minha meta existencial. Até então, sempre que algo bom ou ruim acontecia, eu parava tudo o que estava fazendo para escrever no meu diário. Não conseguia simplesmente "usufruir" o momento. Precisava escrever, precisava registrar, como uma prova de que aquilo estava realmente acontecendo, como uma prova concreta de que eu existia.


Depois de (quase) morrer e de (quase) perder tudo o que eu tenho, percebi que a ideia de me sentir segura escrevendo meus diários dentro de casa era uma mera ilusão. Minha concha não me protegeu de um mundo violento, perigoso e ameaçador.


Não é à toa que minha crônica favorita é "Ostra feliz não faz pérola", de Rubem Alves.

"As ostras felizes riam dela e diziam: ‘Ela não sai da sua depressão…’


Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro de sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar do grão de areia.


Mas era possível livrar-se da dor.


O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas asperezas, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda... Era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola".


Sempre acreditei que era uma "ostra triste", e que as feridas da violência familiar me deram a sensibilidade necessária para escrever e, assim, superar minha dor dilacerante. Escrever sempre foi, para mim, sinônimo de viver. Não conseguia viver sem escrever.


A maior lição de (quase) morrer é que a concha não me protegeu do perigo, muito pelo contrário. Quando todos os moradores do prédio foram para a rua, eu não consegui fugir do fogo, preferi continuar na minha concha. Se meu marido não tivesse me levado para o telhado, eu teria morrido intoxicada. A concha não me protegeu do perigo, a concha me sufocou e (quase) me matou.

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